Sexo frágil? Que nada!

Lília Dias Marianno[1]

Movimentos humanos de nossa época...

Alguns fatos que tenho vivido, recentemente, têm me levado a refletir sobre a força da mulher. Enquanto estou nestas reflexões não consigo impedir que minha mente reproduza os ecos de certos versos do cancioneiro popular: “... dizem que a mulher é o sexo frágil, mas que mentira absurda! Eu que faço parte da rotina de uma delas sei que a força está com elas...”.

Nas últimas décadas, a mulher tem conquistado espaços e reconhecimentos cada vez maiores na sociedade. A competência feminina, no fundo uma bela mistura da sensibilidade e versatilidade, tem levado muitas mulheres à posições de destaque no ambiente acadêmico, profissional, político e também religioso, além da casa, seu espaço principal.

Os reflexos deste irreversível movimento social afetam, inclusive, os setores líderes de nossa denominação, como se pode conferir na discussão sobre a inclusão das pastoras na Ordem dos Pastores Batistas do Brasil. A assembléia anual de 2007 terá decidido sobre este assunto baseada no posicionamento das 31 seções regionais da CBB. E este é apenas um exemplo da incursão das mulheres nos segmentos oficiais de nosso círculo, onde elas foram impossibilitadas de exercer determinadas funções por tanto tempo.

Lamentavelmente, esta conquista do “espaço” feminino tem afetado o espaço masculino de uma forma também irreversível. Os novos papéis que a mulher vem desempenhando na sociedade têm “seqüestrado” espaços outrora exclusivamente masculinos[2]. Muitos chefes de família acabaram perdendo seus empregos porque foram substituídos por mulheres mais “competentes” que eles e “mais baratas”, pois, na verdade esta substituição também tem a ver com a economia de mercado que, em diversos setores, ainda paga salários menores a mulheres que desempenham as mesmas funções dos homens nos mesmos cargos. Não podemos deixar de reconhecer que a sociedade está em movimento e parece que a força da mulher é uma espécie de “motor” neste processo de mobilização, de reposicionamento dos indivíduos.

Movimentos das mulheres nas memórias da minha infância

Na década de sessenta tive oportunidade de residir num dos morros mais famosos do Rio de Janeiro. Naquela época morro ainda não era esconderijo do tráfico. Era tipicamente o lugar de gente humilde, migrante, que tentava recomeçar a vida na cidade grande e aquele foi o único local onde pôde se estabelecer para tal recomeço. Foi o caso de meus avós, que vieram do Espírito Santo com a numerosa família tentando “melhorar de vida”.

No morro a água não chegava até o topo. Muitas mulheres tinham que descer até o “tanque”, o lugar comum para lavar roupa, recolher água e levar para suas casas. Sempre elas, as mulheres. Eu ficava vidrada vendo aquelas mulheres negras, robustas, com uma lata cheia de água na cabeça e outras duas, uma em cada mão, subindo a escadaria do “tanque”, sem deixar cair uma gota no chão! Na minha mente de criança aquilo me fascinava, era artístico o malabarismo impecável daquelas mulheres. Nem uma gota sequer!

Não me vinha à mente nada parecido com segregação racial, estratificação social, pobreza, eu só conseguia enxergar a força delas. Carregar todo aquele peso de latas d’água sem deixar cair uma só gota me parecia uma super competência. Naquela época em que máquina de lavar ainda era um artigo de luxo, a profissão de lavadeira era comum e muitas destas mulheres trabalhavam nela para alimentar suas famílias.

Recentemente, lavando algumas roupas na mão, recordei essas mulheres da minha infância, com suas mãos. Mãos envelhecidas, sofridas, magras, muito enrugadas, rachadas, manchadas, com veias entupidas, unhas quebradiças, com micoses e unheiros infeccionando as cutículas, sempre úmidas. Eram as mãos das minhas tias, minhas avós, e tanta gente da geração delas que gastou a saúde de suas mãos e ventres atrás de tanques e fogões, fazendo faxina, limpando privadas porque, afinal, aquilo era “serviço de mulher”. Pensei no quanto estas mulheres sofreram por falta de uma máquina de lavar e por falta de uma sociedade mais justa, que reconhecesse o valor moral destas mulheres e educasse os homens para ajudá-las nas tarefas pesadas.

Neste ponto a viagem do meu imaginário extrapolou minhas memórias, pois imaginei a época da escravidão, quando nem tanque havia, as roupas eram lavadas nas beiras de rios, em cima de tábuas, com aquelas mulheres agachadas na beira da água, apertando seus ventres molhados, ovários e úteros, contra as pernas contraídas na postura de lavadeira que eram obrigadas adotar durante grande parte do dia a serviço dos patrões. Quem é mulher sabe quão preciosa é, para nossa saúde geral, a saúde da “barriga”.

Um dia desses estava dirigindo à noite para dar aula na faculdade de teologia. Um desses caminhoneiros cuja gentileza parece fugir dele como o “diabo foge da cruz”, fez uma “bandalha” na minha frente, uma fechada daquelas, quase causando um acidente. Ainda pasmada com a hostilidade deste condutor, e sem saber para onde ir, ainda tive tempo de escutar a pérola que saiu da boca deste cidadão: “vai procurar um tanque pra lavar roupas sua...” . E pensei: é fácil ser valente atrás de um volante, difícil é ser macho para encarar um tanque de roupas.

Movimentos das mulheres nos meus dias mais maduros...

Tempos atrás eu tive acesso à história das Madres de Plaza de Mayo através de um artigo sobre a genealogia dos heróis bíblicos[3]. Recentemente estive em Buenos Aires num encontro de teólogos biblistas latino-americanos e fiquei muito contente quando a organização do encontro levou nosso grupo para visitar a Plaza de Mayo e também o café das madres. Então a história destas mulheres se tornou vívida na minha frente. E esta história merece ser partilhada com aqueles que sobre ela sabem muito pouco.

As Madres de Plaza de Mayo são mulheres parentes de prisioneiros/as políticos na Argentina. Estes/as prisioneiros/as são pessoas que lutaram na resistência contra a ditadura naquele país. Durante o regime militar, foram aprisionados, exilados e muitos simplesmente sumiram (ou “foram sumidos”). E enquanto desaparecidos, não existe um luto. Existe sim, uma expectativa de retorno que talvez nunca se cumpra, e que impede estas mulheres de fecharem um ciclo em suas vidas, o de conhecer o paradeiro de seus entes queridos.

Essas mulheres constituem quatro gerações envolvidas com estes desaparecidos, algumas mães e esposas, outras são filhas de presos políticos e outras são avós de crianças nascidas em cativeiro, filhas dos presos que nunca apareceram. No dia 30 de Abril de 1977 estas mulheres começaram uma vigília que já dura trinta anos. Elas passaram a se reunir na Plaza de Mayo, todas as quintas-feiras, caminhando em volta do obelisco central, em frente à Casa Rosada, sede do governo federal da República Argentina[4]. A marca delas é o lenço branco que elas amarram na cabeça. Estas mulheres fazem sua vigília pelos desaparecidos, protestando e exigindo a aparição com vida destas pessoas. Parece fabuloso, mas eu soube que elas já conseguiram recuperar 70% dos desaparecidos, embora muitos ainda continuem sumidos sem nenhuma explicação dos dirigentes, algo que elas exigem incansavelmente. Dezenas de lenços brancos foram pintados em volta do obelisco da praça, como que a marcar um território sagrado onde o espírito maternal desta mulheres, que pariram filhos desaparecidos, clama, reivindica, exige e recupera aquilo que foi perdido.

A organização destas mulheres ganhou repercussão em todo mundo. Hoje elas têm uma universidade aberta para qualquer pessoa, chamada Universidad Popular de las Madres. Fiquei impressionada com os cursos ali ministrados, disciplinas inteiras em nível de graduação superior ou especialização ao preço do que seriam quinze reais em nossa moeda, trazendo conscientização sociológica, política, antropológica. A universidade acaba servindo como uma extensão de grupos marginalizados naquele país que precisam divulgar suas causas para o resto da população. As madres me levaram a pensar em quão sábia, articulada e eficiente pode ser uma mobilização feminina, e que superação intelectual as mulheres são capazes de promover no senso coletivo quando se propõem a fazê-lo.

Mulheres como as migrantes dos morros do RJ, as escravas do passado e as Madres de Plaza de Mayo me relembram que essa força é mesmo coisa de mulher. Lembro da intelectualidade de Débora mobilizando exércitos de Israel, das mãos de Jael, matando a golpe de pedra o poderoso inimigo Sísera (Jz. 4 e 5), da articulação inteligente de Ester (Et. 5), do ventre negligenciado da escrava Agar, que gerou o primogênito de Abraão (Gn 16) e às vezes é considerada como um acidente de percurso na vida do patriarca, da gravidez recriminada de Tamar, o único instrumento pelo qual Judá pôde nos dar origem ao Salvador (Gn 38), da reivindicação jurídica de Rute (Rt 3), ao exigir que Boaz exercesse o papel de resgatador de Noemi (Rt 3). Estas mulheres estão todas ali, no texto bíblico, fazendo história, mostrando que a mão do Senhor esteve com todas elas dando-lhes força nas mãos e sabedoria na mente. Provando que a força delas não é deste mundo, mas tem origem nAquele que nos criou, imagem e semelhança dEle.

Que as mãos e ventres molhados das escravas, o equilíbrio e a robustez das lavadeiras, os lenços brancos destacando a intelectualidade das madres nos façam lembrar, no Dia Internacional da Mulher, que toda esta força é de Deus, vem de Deus e que, ao ser usada, deve, invariavelmente promover justiça na história humana honrando a vida, colocada em nós por Ele, e assim glorificar o nome dEle.

Mulher, bendita seja esta tua força!

[1] Artigo celebrativo do dia internacional da mulher, publicado em: Palavra e Vida. Niterói, Jan-Março, p. 24-27, 2007.
[2] Para aqueles que desejam se aprofundar neste assunto, sugiro que acessem a Revista Mandrágora, No. 12, 2006, Masculinidade, Gênero e Religião, publicada pela editora da UMESP.
[3] MANSILLA, Sandra Nancy. Hermenêutica das linhagens políticas – Um estudo sobre os discursos em torno das genealogias e suas implicações políticas. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, Vozes, n. 41, p. 92-102, 2002/1. Para conhecer a história destas mulheres, veja http://www.madres.org/asociacion/noticia/madresver2.asp

Comentários

Anônimo disse…
Quisera eu dizer isso de vocês, mas Gil fez primeiro:
"Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria.
Que o mundo masculino tudo me daria
do que eu quisesse ter;
Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara;
É a porção melhor que trago em mim agora,
É o que me faz viver."

Parabéns, o blog tá excelente!

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