SEXO, SEXUALIDADE E REFLEXÃO TEOLÓGICA: ONDE É QUE ELES SE ENCONTRAM?

Uma introdução ao debate sobre teologia e gênero [1]

Lília Dias Marianno

PARTE 1

Resumo


Este artigo foi produzido para a seção de gênero da revista Incertezas. Seu objetivo é introduzir o campo epistemológico duas de suas principais categorias de análise: corpo e sexualidade como espaços de produção do saber. Traça o desenvolvimento histórico da teologia feminista desde suas origens nos anos 70 até o século XXI. Mostra como o modelo de estudos de feministas estabelecem a estrutura dos estudos de gênero e teologia que vêm sendo desenvolvidos no segmento queer e também nos grupos de varões.


“Ser um homem feminino, não fere o meu lado masculino,
Se Deus é menina e menino, sou masculino e feminino...” [2]

Introdução

Os versos da canção “Masculino e feminino”, que estourava nas paradas de sucesso durante os anos 70, são nossos provocadores neste momento. A reação de muitos aos versos desta canção era a de considerar um absurdo que estas frases de conotações “homossexuais” envolvessem o nome de Deus sem qualquer tipo de reverência. A começar por seus autores e intérpretes, Pepeu Gomes, Baby Consuelo e os Novos Baianos, o próprio comportamento da banda era considerado extravagante. Os Novos Baianos eram “desenquadrados” até mesmo no meio da MPB, eram “desviantes”, transgrediam o senso de “normalidade” social. Um olhar preconceituoso sobre estas pessoas sempre recriminou e rotulou suas músicas como “estranhas” e com isso deixou-se de perceber os sujeitos religiosos por trás dos versos que viriam, num futuro não muito distante, surpreender a nação brasileira com seus depoimentos.

Baby Consuelo, com toda sua excentricidade, estava, desde aquela época, numa busca incessante pelo sagrado, que se transformou em testemunho público pelo menos em duas ocasiões diferentes, que eu tenha assistido, no programa do apresentador Jô Soares, anos antes que ela viesse dar seu testemunho de conversão à fé evangélica, surpreendendo a audiência brasileira no final da década de 90.

No fim dos anos 90, a niteroiense Bernadete Dinorah de Carvalho, que havia mudado seu nome para Baby do Brasil, se tornou pastora evangélica da Igreja Ministério do Espírito Santo de Deus em Nome de Jesus, (quem poderia imaginar isso naquela época?). A pergunta que faço é: Será que os autores destes versos estavam tão “chapados” na década de 70 que não diziam coisa com coisa? Ou ainda, que tipo de insights aconteciam em suas confabulações a ponto de refletir impressões teológicas de forma tão ... “desviante” (ou implicante) para muitos?

A Teologia Sistemática sempre se preocupou em definir a essência de Cristo. Desde o Credo dos Apóstolos, formulado a partir do segundo século da nossa era e também através dos vários concílios que ocorreram de 325 até o séc. VIII EC, este tema provocou calorosas discussões, sendo retocado nas diversas fórmulas de credos subseqüentes. Mas é interessante a ausência de uma definição da essência de “Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Isso é o máximo de definição da pessoa de Deus que os cristãos dos primeiros séculos registraram. O que se registrou sobre a pessoa de Deus depois disso é fruto do árduo trabalho de interpretação bíblica e reflexão teológico-filosófica tanto dos pais da igreja quanto dos cristãos posteriores.

E o que Baby Consuelo tem a ver com os pais da igreja? Simples: será que, de uma voz “desviante” do século XX não se levantou uma suspeita hermenêutica sobre algo que o texto bíblico nunca fechou totalmente? Será que os Novos Baianos não estavam fazendo “reflexão teológica” por trás de seu comportamento irreverente e “implicante” para tantos? O fato de hoje Baby do Brasil ser uma “irmã em Cristo” nos faz pensar nestas coisas e chega ser divertido imaginar tais possibilidades.

1. “Quem me livrará do corpo desta morte?” (Rm 7.24)

A teologia sistemática nos ensina que aquilo que possuímos de “imagem e semelhança de Deus” é o nosso espírito, não o nosso corpo. Mas o texto bíblico que trata desta semelhança insinua algo sobre o corpo. Com todo o respeito aos demais exegetas que optaram por uma tradução diferente da que apresento abaixo, devo lembrar que todo tradutor precisa fazer sua própria opção hermenêutica sobre o texto, uma vez que a língua original possui uma riqueza de sentidos (polissemia) diferenciada da língua para a qual o texto está sendo traduzido. Assim, minha tradução de Gn 1.27 enxerga a seguinte possibilidade hermenêutica:


E criou Elohim ao ser humano

de uma estátua dele

em imagem de Elohim o criou

macho e fêmea criou [3]


A idéia de nosso corpo não fazer parte da “imagem de Deus” fica meio insustentável sob este ângulo. Como lidar com os conflitos entre religião e sexualidade, teologia e diferenças de gênero? Como superar a influência do dualismo neo-platônico na teologia que tanto enfatiza o corpo como mau e a alma como boa? Como re-significar o espaço do corpo dentro da teologia? Este corpo, sexuado e sexualizado, foi escolhido pelo Espírito Santo como sua habitação e como lugar permanente da presença de Deus conosco por “todos os dias até a consumação dos séculos”. Será que há compartimentos proibidos nele, nos quais o Espírito Santo evita entrar, como por exemplo, sexo e sexualidade? Existem assuntos sobre o corpo que consideramos não possuírem relevância teológica por imaginarmos que eles contaminam o ideal de santidade? Se o corpo é mau, porque a teologia do Antigo Testamento concentra sua expectativa de vida vindoura através da ressurreição deste mesmo corpo? Bem, vamos por partes.

Para entender quais são os principais temas dos estudos de gênero e religião precisamos primeiramente entender o papel do movimento feminista e da teologia feminista na América Latina e no Brasil. Por dois fatores, em primeiro lugar porque as teorias feministas deram origem à teologia feminista (no campo da teologia sistemática) e à hermenêutica feminista (no campo ta teologia bíblica). Em segundo lugar porque seguindo as linhas mestras das teorias e teologias feministas, outras teorias e teologias foram surgindo, como a queer e a de masculinidade.

Estudar a aproximação bíblico-teológica que pessoas do universo GLBTT [4] e de grupos de varões têm feito, exige que compreendamos a trajetória da aproximação bíblico-teológica das mulheres. A aproximação queer se apropriou de princípios delineados pela aproximação feminista e a aproximação de masculinidade se apropria de paradigmas de ambas: feminista e queer. Diga-se de passagem, a aproximação de masculinidade ganha corpo por incentivo direto e permanente da aproximação bíblico-teológica feminista e queer. Esta interação torna muito enriquecedor o debate sobre gênero, religião e teologia.

2. A trajetória da aproximação bíblico-teológica feminista

Os movimentos feministas no Primeiro Mundo re-surgiram na década de 60/70 (pois houve uma iniciativa anterior no séc.XIX) com a exigência de equiparação jurídica, social e religiosa das mulheres e também da transformação das estruturas patriarcais e do sistema de valores androcêntrico na sociedade [5].

Antes que estes termos nos confundam, chamamos de androcentrismo à estrutura preconceituosa que caracteriza as sociedades de organização patriarcal, que quando estabelecem normas e valores, eles se dão a partir da condição de vida do homem adulto do sexo masculino, ignorando-se crianças, mulheres e idosos [6] . Chamamos de estruturas patriarcais às estruturas sociais que encerram o poder na mão dos homens e subjugam as mulheres, colocando-as em segundo plano e impondo-lhes subordinação[7].

A teologia feminista na AL, diferente da teologia feminista do Primeiro Mundo, pois é filha do confronto entre fé, política e direitos humanos que o continente latino sofreu nas últimas três décadas. A década de 70 trouxe para o cenário religioso a efervescência dos movimentos populares, dos partidos de esquerda e das lutas contra os desmandos das ditaduras militares nos países latino-americanos. O oprimido e o marginalizado passaram a ser entendidos como sujeitos históricos deste confronto e a teologia da libertação tem tais grupos no seu foco. A mulher latino-americana, oprimida, discriminada e tantas vezes enviuvada e desfilhada por este sistema também é sujeito histórico neste conturbado contexto sócio-político.

Assim surge a aproximação teológica feminista na América Latina, filha da teologia da libertação, tendo, neste primeiro momento, dois eixos de luta: a) o comprometimento com os ideais feministas de desconstrução dos modelos patriarcais e androcêntricos de sociedade e b) a luta pela libertação político-econômica do povo latino-americano como um todo.

A hermenêutica bíblica que daí surgiu tinha, logicamente, teores populares e militantes, pregoeira da libertação e da transformação da realidade, entendendo Reino de Deus como uma realidade de relações mais justas, de construção de um novo mundo possível. Deus é interpretado como agente libertador e solidário que luta em favor dos oprimidos e oprimidas [8].

O pobre e o oprimido têm suas próprias formas de enxergar o mundo e tais visões começaram a influenciar o discurso teológico feminista latino-americano na década de 80, quando a leitura popular da Bíblia se tornou um exercício sistemático de reflexão teológica no nosso continente. Os países latinos estavam sofrendo maior repressão dos EUA devido à mudança de interesses pelos direitos humanos ocorridas na transição dos governos Carter para Reagan. Os arautos dos direitos humanos e dos movimentos de libertação foram considerados perigosos e os teólogos da libertação como Leonardo Boff, passaram a ser pressionados pelo Vaticano, encabeçadas pelo então Cardeal Ratzinger.

Alguns organismos ecumênicos como CLAI e CONELA [9] foram criados por iniciativas protestantes. Neste contexto ecumênico as teólogas feministas e os demais teólogos da libertação empreenderam um diálogo aberto em prol de uma libertação para os marginalizados: homens, mulheres, crianças, idosos, deficientes físicos etc. A teologia feminista passou a se ocupar em recuperar os aspectos femininos do discurso sobre Deus e mostrou que o fazer-teológico das mulheres latino-americanas tinha seu próprio pano de fundo. Ele vinha do cotidiano e do corpo destas mulheres cuja experiência e cosmovisão sempre foi diferente da dos varões por fatores culturais, biológicos e históricos [10] . E também era diferente da experiência das teólogas do primeiro mundo.

Nesta década as teólogas feministas latino-americanas começaram a dialogar com as teólogas feministas do Primeiro Mundo, mas as teorias de gênero desenvolvidas pelas últimas não foram muito usadas neste princípio em nosso continente.

As conseqüências destes movimentos foi a revalorização do cotidiano e do corpo das mulheres como “chão” hermenêutico e as virtudes exigidas das mulheres pela sociedade passaram a ganhar olhares da crítica feminista. O intercâmbio com as biblistas feministas do Primeiro Mundo sugeriu reconstrução de vários textos bíblicos e as biblistas latino-americanas abraçaram o desafio com grande motivação. Uma auto-educação foi iniciada para se adotar uma linguagem inclusiva ao se falar de Deus como “Deus pai e mãe” e a teologia passou a ser definida como “teologia a partir da mulher”.

Os anos 90 introduziram novas pautas para abordagens feministas. A teologia a partir da mulher começou a olhar para outros aspectos da vida, como a questão da terra e da água, introduzindo o conceito de “ecofeminismo holístico”[11] em suas premissas. O contexto internacional e os movimentos de resistência contra as ditaduras militares na AL continuavam afetando a reflexão teológica.

O movimento de leitura popular da Bíblia e as comunidades de base sofreram uma estancada. Emergem, então, para manter o vínculo da teologia feminista com o ideal de libertação, os movimentos indígena e negro [12], que trazem novos insumos hermenêuticos em visão étnico-racial incluindo mais este eixo na aproximação bíblico-teológica feminista.

A recém-consolidada nova ordem econômica internacional capitalista e neoliberal, que afetou a comunidade européia e o cone sul começaram a despertar reflexões teológicas e a hermenêuticas das mulheres. Novas ênfases que tratavam de temas como economia de mercado e revelação da divindade em culturas não-cristãs começaram a ser trabalhados pelas mulheres latino-americanas.

Até aqui vimos que a reflexão bíblico-teológica das mulheres na AL teve seu próprio cenário de nascimento, seu chão, e só posteriormente começou a dialogar com a reflexão de mulheres do Primeiro Mundo. Vimos também que a teologia feminista latino-americana se compreende filha da teologia da libertação, possui desde seus primórdios fortes vínculos com as lutas políticas, tem o cotidiano e o corpo das mulheres como espaço do fazer teológico e foi introduzindo, sucessivamente temas como ecologia, etnia, economia de mercado e manifestação do sagrado. Que desafios se impõem à reflexão bíblico-teológica latino-americana no século XXI?

(continua na próxima postagem)
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Notas

[1] MARIANNO, Lília Dias. Sexo, sexualidade e reflexão teológica: onde é que eles se encon-tram? Em: Incertezas.Rio de Janeiro, n.3, ano 2, 2007, p. 5-70.
[2] Masculino e Feminino. Copyright: Baby Consuelo, Didi Gomes e Pepeu Gomes.
[3] O primeiro sentido desta palavra é estátua, depois vem imagem, e então modelo e desenho, tu-do sugere forma física. Já a preposição pode ser traduzida como em, dentro de, em meio de, entre, como (na qualidade de, na condição de); em companhia de, junto com; por meio de; de (indicando matéria). KIRST, Nelson. Dicionário Hebraico-Português, Aramaico-Português, p. 21
[4] A sigla GLBTT representa a união das definições de sexualidades queer, que são representadas por sujeitos Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais. A sigla longe está de fechar a definição, porque os estudos descobrem uma nova “sexualidade” a cada dia, entretanto continua sendo usada para definir sujeitos queer na cultura brasileira.
[5] GÖSSMANN, Elisabeth. Dicionário de Teologia Feminista, p.502.
[6] Idem, p. 21.
[7] Idem, p. 370.
[8] RESS, Mary Judith. História da Teologia Feminista na América-Latina, p. 40.
[9] CLAI – Conselho Latino Americano de Igrejas e CONELA- Confraternidad Evangélica Latino Americana
[10] Idem, p. 42.
[11] Entende-se por eco-feminismo holístico, expressão utilizada por Mary Ress, como o próprio conceito básico de teologia aplicado a toda a criação de Deus a partir das mulheres. “Poderíamos definir a ecologia como a ciência e a arte das relações dos seres relacionados [...] a ecologia possui um conteú-do eminentemente teológico” BOFF, Leonardo. Ecologia mundialização e espiritualidade, p.19.
[12] É interessante acompanhar movimentos como os de Chiapas e sua influência na hermenêutica bíblica indígena, por exemplo.


ver bibliografia completa no final da postagem da parte 2 deste artigo.

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