Em terra de VICE, quem tem "olho" aprende a votar.

São Paulo, 31/08/2016. Data que me entristece.
Vejo tanta gente falando do golpe de maneira pontual e desmemoriadas, como se 1964 fosse o único exemplo de golpe que enfrentamos na história, que fico bastante preocupada com o "para onde" esta ignorância histórica vai acabar nos levando, enquanto nação verde-e-amarela.
Há exatos dois anos fui convidada para ministrar um devocional durante os encontros da Assembleia Anual da ABP, que traziam a memória dos "50 anos de ditadura". A Bíblia teve um espaço privilegiado numa das manhãs e lá estava eu. Estávamos às vésperas das eleições presidenciais, e eu tivera acesso, poucos dias antes, a uma "informação privilegiada" (e que nem era segredo), de que se Dilma Roussef fosse reeleita, as elites da direita, associadas com os militares, desencadeariam um novo golpe. Eduardo Campos ainda não tinha morrido no acidente aéreo. Marina era uma candidata a vice-presidência.
Chamar uma biblista (engajada com a profecia bíblica) para fazer um devocional, num grupo progressista, que discutia ditadura com ardores puramente políticos e com pouca maturação de batalha espiritual e do "sistema" que governa este mundo, e querer ouvir o que é "agradável aos ouvidos" é um risco tremendo e geralmente não dá certo. E foi o que aconteceu.
Naqueles dias eu estava estudando direito constitucional para um concurso, e ficando perplexa com a quantidade de vezes que nosso Brasil teve a democracia solapada, desde a Proclamação da República. O Brasil sofre golpes de estado desde que se entende como nação independente de Portugal. É pré-republicano esse hábito.
Eu não tinha consciência que eram 11 presidentes depostos e impedidos em 127 anos, quase um a cada década e, como andava meditando sobre Daniel 9 e 10 e, por estes textos, adquiria uma nova compreensão do Sistema por trás dos sistemas (Ef 6). De repente a história das nossas constituições revelou um quadro bem maior da opressão dos poderes que tem gerido a pátria-mãe gentil. Para usar uma linguagem do meu novo campo de estudos, o ator-rede desta engrenagem é uma rede de poderes humanos e não humanos que interferem na ordem mundial. E com os capítulos de Daniel tão audíveis na mente, não tive como convida-los a refletir sobre essa coisa Maligna por trás de tudo que governa nosso país, interferindo na ordem e no bem-estar da nação. Então perguntei àquela assembleia: "e se o golpe acontecer de novo, o que vamos fazer"?
Infelizmente, como vem se tornando cada vez mais comum neste país, se você traz questionamentos à "esquerda" você é "coxinha e golpista", e se você não concorda com os golpistas você é "petralha". Me senti como quem fala a uma parede de concreto e alguns me interpretaram como golpista, enquanto outros me procuraram para dizer que aquela fala fez muito sentido naquele momento dos encontros. Naquele dia senti profunda tristeza, a mesma tristeza que sinto hoje e que me faz escrever para ver se aliviava. Saí do encontro sem me despedir de ninguém, sem querer que notassem que saí. Ninguém respondeu à pergunta que fiz, mas os dirigentes da assembleia, meio sem jeito, fecharam minha fala com uma expressão meio perplexa (talvez não acreditando que tive coragem de fazer tal questionamento) e disseram: "graças a Deus hoje temos a democracia".
Temos mesmo? Que "povo" realmente tem poder neste país? Podemos nos regozijar com os profetas bíblicos, ou suspirar desejando que "corra a justiça como um ribeiro perene"? Acho que não.
Na juventude fui PTista de carteirinha, em 1988, 1989... quando havia uma proposta clara do que seria feito a favor do povo, e por isso, embora não tivesse votado em Lula na primeira candidatura, votei nas duas eleições seguintes. Mas sabe quando a gente vê o exercício do poder sendo deformado? Foi por isso que não votei em Dilma em nenhuma eleição, tinha medo da forma como o PT mudou sua filosofia política e passou a fazer alianças perigosas, com partidos que não passavam de representações personificadas dos donos do capital, travestidos de democráticos só porque colocaram a letra D na legenda.
Independente de não ter votado em Dilma, não tenho como ficar contente com o que aconteceu hoje. Isso é coisa muito séria e não sei se os cristãos estão se dando conta de em qual ponto do "sistema" nós estamos engrenados.
Nestes meses, vi muita gritaria, muita bateção de panela, muita vuvuzela, muita vaia, muito "fora Temer" de um povo que não sabe votar, que elege presidentes por paixão e não presta atenção nas alianças que estes mesmos presidentes estabelecem, alianças que determinam quem serão os vice-presidentes, e isso é muito perigoso. Num país que já teve tantos presidentes depostos como o Brasil, este item precisava ser considerado com tremenda atenção na hora de votar.
Não sei se outro país latino-americano tem tanta reincidência de presidentes depostos, impedidos, mortos antes de tomar posse... isso é, no mínimo, muito estranho, para não usar a palavra "sobrenatural", pois esta minha visão da anormalidade pode ter sido aquilo que assustou o grupo que ouviu minha pergunta. Não podemos ignorar que nossa tradição histórica é antidemocrática. Presidentes a favor do povo são retirados do poder, seus vices ou interinos são nomeados, assumem em seus lugares e lá vamos outra vez, viver a mesma situação, pela undécima vez.
Como somos historicamente desmemoriados, resolvi pesquisar as datas e os nomes de todas as vezes que isso ocorreu desde a Proclamação da República.
  1. Afonso Pena (1909) (morreu antes do fim do mandato), assumindo seu vice: Nilo Peçanha.
  2. Rodrigues Alves (1918) (morreu antes de tomar posse no segundo mandato) - substituído por seu vice: Delfim Moreira - ficou um ano interino na presidência).
  3. Júlio Prestes - (impedido de posse por causa do golpe de 1930) - Junta Provisória Militar governa até a designação de Getúlio Vargas.
  4. Getúlio Vargas (1930-1945) depois de longo período no qual governou inicialmente para atender as expectativas militares, foi derrubado do poder pelos mesmos, sendo substituído por José Linhares, interino convocado pelos militares.
  5. Getúlio Vargas (1951) - agora eleito pelo povo, volta ao poder para defender os interesses da sociedade, então o trágico episódio que o levou ao suicídio (1954). Café Filho, seu vice, toma posse no poder.
  6. Carlos Luz - interino - permaneceu no poder por 3 dias em 1955 - sofreu impeachment.
  7. Nereu Ramos - interino - permaneceu no poder por 2 meses entre 1955 e 1956 até completar o quinquênio presidencial.
  8. João Goulart - foi vice de Juscelino e também de Jânio Quadros, que renunciou em 1961, mas Goulart foi impedido de tomar posse naquele momento, tendo sido substituído por Ranieri Mazzilli 1961 e depois, segunda vez, quando João Goulart foi eleito e governou (1961-1964) mas sofreu o golpe militar.
  9. Tancredo Neves - morreu antes de tomar posse (segundo caso de morte antes de assumir), o vice José Sarney governou em seu lugar por TODO O MANDATO (1985 - 1990).
  10. Fernando Collor de Melo - impedido após dois anos de mandato, o vice Itamar Franco (1992-1995)
  11. Dilma Roussef - realizou o primeiro mandato, sofre impeachment em 2016 e o Brasil mais uma vez parece que vai ser governado por seu vice Michel Temer por um mandato de mais dois anos, a não ser que o "filho teu" que " não foge à luta" vá às ruas em plebiscito exigindo novas eleições.
Minha querida nação, honestamente, isso é normal?Será que esta história, por si só não tem o poder de nos ensinar a rever nossa forma de votar e os valores que estamos atribuindo neste processo de escolha presidencial e dos demais políticos?
Em 127 anos de República tivemos 11 casos de substituição dos presidentes eleitos.
Se Dilma Roussef foi impedida (e nem vou gastar tempo discutindo o mérito porque isso já está exaustivamente debatido), estou interessada no dia seguinte: o que nosso povo vai fazer? Fiz esta pergunta dois anos atrás e ninguém ainda me respondeu. Porque me interpretaram como "respiros golpistas". Mas não eram, nunca foram. Talvez fosse pura profecia, não no sentido do "feito inédito", mas no sentido do discernimento profético, de ver o caminho que a situação está tomando e de conclamar o povo à ação de arrependimento.
Sou uma brasileira, filha de um pequeno agricultor e uma empregada doméstica que lutaram demais para progredir na vida, num tempo de ditadura militar, quando quem se dava bem era quem já estava bem e financiava a ditadura. Mobilidade social era quase impossível e demandava cinco vezes mais esforço do que na conjuntura atual.
Meus pais levaram mais de 30 anos para sair do estágio de pobreza em que vieram do interior, nos anos 50, até chegar à profissionalização técnica, trabalhando como funcionários públicos concursados. Eles fizeram parte do grupo que pagou "com o próprio bolso" a implementação do Plano Real durante o governo de Fernando Henrique. Quitaram o apartamento de 45 metros quadrados num bairro popular, de classe média/média, poucos anos atrás depois de 30 anos de financiamento, com juros residuais altíssimos.
Eu nasci, 50 anos atrás, numa favela e minha vida é marcada por muita luta para chegar nesta posição de doutora na área bíblica. Nada foi fácil para nossa família. Ficou mais fácil para muita gente em condições miseráveis, muito piores do que a pobreza da minha família, pelo menos nos últimos três mandatos presidenciais. E quanto a isto, sem nenhuma hipocrisia, sou grata a Lula e a Dilma, por terem permitido a esta gente fadada à miséria e à marginalização alguma mobilidade, alguma esperança, alguma possibilidade de melhoria de vida. Se não fossem os programas sociais do governo a situação seria muito pior. Pela primeira vez centenas de milhares de brasileiros receberam dignidade e valor, acesso à melhores condições de habitação, alimentação, saúde e educação. Estes programas sociais me beneficiaram de alguma forma? Não. Não sou usuária do sistema de Programas Sociais porque foram feitos para pessoas em condições muito críticas, felizmente não era meu caso, nunca burlei o sistema para me beneficiar de algo que não foi feito para mim. Celebrei com os pobres da minha nação as melhorias que tiveram.
O que espero da minha gente no "dia seguinte"?
MATURIDADE ELEITORAL!!!
Saibam fazer escolhas! Aprendam a votar!
Não permitam que essa história de presidentes depostos (ou mortos!) continue! Exijam o plebiscito!
Se Dilma acabou sendo retirada por "má gestão" (já que não se provou o crime e a tal má gestão não está plenamente documentada), e se brasileiros não querem um Temer no poder, façam sua voz valer.
E façam direito!!! Um mero "Fora Temer" com bateção de panela não resolve nada. Tirem o Temer! Esse é o meu desafio a vocês.
Essa jogada não é coisa de militar, é donos do capital e os militares não se enquadram nesta faixa de bem-estar socio-econômico há muito tempo. Os donos do capital, onde quer que estejam (direita, esquerda ou centro) não conseguem mais apoio norte-americano como conseguiram em 1964, por isso não conseguiram impedir que ela vencesse as eleições. O jeito que encontraram foi manipular a informação até resultar no que está ocorrendo. Isso é coisa de quem tem muito dinheiro a perder com benefícios às classes menos favorecidas. Só que essa gente não percebe que sistema econômico é uma engrenagem e os pobres em mobilidade e ascensão social, são os consumidores dos negócios deles. Haverá ricos quebrando por causa disso e por causa da forma como os pobres serão esmagados com as medidas desta mentalidade de poder substituto.
Quero ouvir, agora, a voz do povo, e espero que, como na profecia bíblica, fazendo correr a justiça como um ribeiro perene, ela corresponda à voz de Deus!
Vamos orar com esta canção?
Pra cima Brasil - João Alexandre


Comentários

Unknown disse…
Bravo!!!
Essa é a questão!!!
Você conseguiu colocar nesse texto tudo que eu não conseguiria, mas que é como penso e sinto!
Unknown disse…
Bravo!!!
Essa é a questão!!!
Você conseguiu colocar nesse texto tudo que eu não conseguiria, mas que é como penso e sinto!

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