Receios



Receio  que  a rudeza dos relacionamentos das sociedades modernas 
um dia me afete e me transforme num alguém tão rude ou mais que os meus agressores.

Receio que  minha luta por justiça e direitos humanos 
me transforme numa pessoa tão injusta 
quanto é injusto aquele opressor que eu reprovo nos meus pensamentos.

Receio que minha luta contra a intolerância 
me cegue ao ponto de não perceber  
quando eu mesma ultrapassei a fronteira entre tolerância e intolerância.

Receio que a onda de ódio que domina as redes sociais 
me sequestre ao ponto de um dia eu usar meu lugar de fala 
para reproduzir o  “mais do mesmo” que nos sufoca e que nos oprime.

Receio uma exegese de conveniência feita sobre o texto bíblico, 
relativizando valores que são perenes 
e deturpando conteúdos a meu próprio bel prazer 
ou de maneira utilitária, usando-a em benefício próprio.

Receio o suposto discurso  inclusivo, porém extremista, do Evangelho 
que acaba recriminando aquele que nunca será igual a mim, me fazendo acusar brancos e héteros em nome de uma suposta inclusão por negros e LGBTs, me impede de discernir as coisas.

Receio não viver o sentido verdadeiro do Evangelho, 
que se revela em amor e jamais em ódio, que se revela em respeito 
e que não confunde voz profética com voz do Acusador.

Receio que a militância por direitos humanos e por libertação da pessoa, 
me transforme numa pessoa desequilibrada entre revoluções e entre limites.

Receio confundir liberdade com liberalismo, ser libertária ou ser libertina. 
Não há como promover liberdade com anarquia, 
não há como ser livre confundindo os libertários com os libertadores.

O que é ser libertador, no fim das contas?

O que é promover a verdadeira liberdade?

Aprendi que “meu direito termina onde começa o direito do meu próximo”.  Não interessa se o próximo é alguém que não é digno de honra, que eu reprovo, que eu condeno, que preferia ver atrás das grades, ele tem os mesmos direitos  que eu.  

Esse próximo faz parte de mim, enquanto espécie humana, e negá-lo é negar a mim mesma. Não é correto usar a luta por justiça para confundir voz profética com voz do Acusador porque quando entramos neste nível, começamos a prestar um desserviço a nós mesmos e à sociedade, descemos a um nível tão profundo que já não é mais possível sermos discernidos no meio do lamaçal pois nos igualamos a ele.

O rabino Nilton Bonder escreveu, em seu livro Judaísmo para o século XXI, algo que tem me marcado nos últimos 18 anos:
“O intolerável é sempre uma medida muito interessante. Representa a transgressão de uma fronteira que na verdade só se define claramente ao ser cruzada. Infeliz do tolerante que não conhece a experiência de limites.”

Que vigiemos nossas passagens, nossas transições, nossas mudanças nossas mutações. 
Que elas nos tornem em seres humanos melhores e não em pessoas piores.
Enquanto isso, eu fico por aqui, vigiando meus próprios limites.
Feliz Páscoa.


Lília Marianno é mulher, é mãe, é educadora. É Mestre em Teologia Bíblica pelo STBSB e Mestre em Ciências da Religião pela UMESP. Administradora, especializada em gestão do conhecimento, empresária, escritora, conferencista e louca suficiente para encarar um doutorado em Ciência e Tecnologia simultâneo com uma licenciatura em Matemática. Dirige a Eagle Gestão do Conhecimento, empresa educacional focada em educação transformadora e inovadora.

Esse texto foi publicado em 30/03/2018 no Instituto Mosaico


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