Sob as luzes da ribalta: relações de gênero na corrida pelo "púlpito" ... eletrônico

Lília Dias Marianno [1]

Ao pensar nesta comunicação, minha idéia era aproveitar alguns dos temas já desenvolvidos neste simpósio, sobre os quais venho fazendo alguns apontamentos e tocar em pontos nevrálgicos a respeito do uso da mídia televisiva e a espiritualidade popular. Como já foi dito aqui, a TV e o clero possuem o monopólio da fala, por esta razão a idéia era levantar alguns questionamentos sobre a presença e atuação de mulheres em posição de “clero” na TV: pastoras, esposas de pastores e “tele-evangelistas”.

Todavia isto carece de esclarecimento de que uma análise de gênero não é uma análise exclusivamente feminista. As teorias feministas forneceram um roteiro para os demais estudos de gênero, isto é fato, mas falar de gênero como sinônimo de feminismo provoca um empobrecimento de sentido que precisa ser corrigido. Falar de relações de gênero na corrida pelo púlpito implica em tocar nas disputas de interesses e medições de força (que entram nas esferas políticas, religiosas, econômicas, simbólicas e coercitivas como já foi falado aqui) quando se coloca homens e mulheres na condição de pastores e pastoras, chegando até o extremo mais polêmico que é o de discutir a questão dos gays na posição de pastores, algo que já aviso: NÃO FAREMOS AQUI. Por isto também tivemos que incluir os homens, já que a corrida pelo “palco luminoso” nunca foi exclusividade feminina.
Esta tentativa nos fez deparar com uma antiga questão, muito mais relevante para a ética cristã do que se mulheres e gays têm ou não têm o direto ou condições de exercer o pastorado. Trata-se de uma questão que ainda se encontra sem uma resposta convincente: qual uso que os evangélicos têm feito dos canais de comunicação públicos? Este uso tem glorificado o nome de Cristo? Ou uma questão ainda mais fácil de pesquisar: qual é o percentual de pessoas que realmente tiveram uma experiência de encontro com o Salvador por estas vias?
Tentei fazer uma seleção das "pérolas" nas bocas destas “celebridades” evangélicas que andam expostas por aí, na intenção de montar um pequeno vídeo de MP3 contendo uma mixagem de trechos que “marcaram” a trajetória destas personagens na TV, uma pequena amostragem de 5 minutos. Mas a tarefa foi ficando impossível e o rumo do meu ensaio acabou mudando um pouco.
Com o intento inicial começamos a recolher materiais relacionados a: mulheres, liderança, espiritualidade popular e TV. Tivemos contatos com alguns materiais simplesmente bizarros, reais, e, assustadoramente, muito bem recebidos pelo público em geral. Verdadeiros mecanismos de lavagem cerebral e manipulação das massas. Nosso olhar focava o efeito destas pregações da “telinha” na vida dos fiéis.

Começando com alguns trechos de Josué Yrion[2], pregando no Brasil, flambando a Disney no seu português inglesado, neurotizado pelos efeitos demoníacos dos filmes e desenhos da produtora na vida das crianças (americanas). Impressionante a ausência de exemplos brasileiros para justificar sua tese, apenas exemplo norte-americanos desconsiderando todo o contexto cultural americano que tanto favorece determinados resultados. A seguir alguns trechos da pregação da menina pastora, Ana Caroline[3], aos 7 anos de idade, verborragizando um sermão sem sentido, que misturava pedrinhas da funda de Davi com a fidelidade de Rute e as promessas de Deus a Josué de ser forte e corajoso, junto com muita saliva e gritaria dela e do auditório que experimentava uma verdadeira catarse emocional na reunião, obviamente, durante tudo isso os dízimos eram recolhidos.

Depois destas duas tomadas consegui encontrar Baby do Brasil em 2006, no programa do Jô celebrando seus 6 anos de conversão, afirmando que como ministra de louvor e “pop-stora” diz para sua igreja que “não vai ter bunda-mole no céu só casca grossa”[4], a seguir tentava impetrar a cura divina sobre um problema que o apresentador tem nos braços, após ele confessar que durante uma dessas orações pela televisão ele orou com fé pela cura do braço e nada aconteceu. É de se imaginar que não houve espaço no programa para a continuação da operação de maravilhas.

A junção destas primeiras incoerências já causava transtorno mental, mas achei que este continuaria sendo um bom caminho para nossa análise, então mergulhei num outro vídeo, no qual Estevam e Sônia Hernandes[5], em maio de 2002 no programa do Gugu Liberato, transtornados pela capa de Época que os chamava de “caloteiros da fé”[6], negavam as acusações de acúmulo ilegal de patrimônio, mesmas acusações que os deixaram sob vigilância da Receita Federal e que de certa forma é responsável pelos episódios do início de 2007[7]. Depois disto encontrei outro vídeo, desta vez com Silas Malafaia descendo o cajado no casal Hernandes pelo enriquecimento[8] e seguidamente um outro vídeo, desta vez com Caio Fábio[9] descendo o cajado no Silas e nos Hernandes, afirmando que ninguém pode acusá-lo de nada. Fiquei confortada ao concluir meu roteiro na internet com outro vídeo da menina pastora, vídeo atual[10], no qual ela conta com 13 anos de idade e desenvolveu um ministério de oração pelas pessoas, no qual atende em casa, através do telefone, ou no monte de oração, ali sozinha, com os membros de sua família às vezes, sem nenhum chamariz, sem nenhuma ribalta, sem nenhum holofote.

Depois deste ataque à minha própria capacidade de tolerância, desisti da internet e resolvi cumprir a tarefa de assistir aos programas evangélicos de TV que passam no canal aberto, mas confesso que foi mais difícil do que pela internet. Assustei-me ao ver a forma como importantes questões de gênero quanto: depressão masculina, sexualidade masculina e feminina, incluindo questões de impotência eram tratadas de forma tão leviana através do “púlpito eletrônico”..
Esta semana assisti Malafaia em uma de suas pregações gastar perto de 10 minutos de uma de suas mensagens falando de vigor sexual masculino, usando o exemplo de Caleb aos 80 anos, dizendo que a força de um homem está no seu falo, na sua potência sexual. Que os homens de 40 anos hoje estão todos caídos... “Se está faltando potência, meu irmão: toma catuaba, viagra”, e dizendo que a medicina hoje está muito avançada, concluiu dizendo: “A obediência à Bíblia é o segredo para o sucesso”, e eu fiquei me perguntando: e quando o crente é obediente e sincero, é um justo, e mesmo assim sofre e não tem sucesso em tudo? Por que só se prega sobre sucesso, e não sobre graça na provação? Por que este espaço público não é usado com honestidade para falar dos sofrimentos que passamos por nos dedicarmos à obediência e à vida de verdadeiro discípulo de Cristo?

Claro que depois de tudo isso mais 10 minutos do programa eram usados para a promoção de livros de sua editora, que com a bagatela de “140 reais” o cliente tem descontos pela compra dos 4 volumes, incluindo um livro de auto-ajuda, não cristão muito interessante chamado: Degraus de poder para o sucesso ... muito imprópria esta insistência com as palavras poder e sucesso em todo o teor da pregação e também no decorrer do programa,
Ah sim, não podia deixar de falar das dicas de higiene fornecidas por sua esposa ensinando as pessoas a lavarem as mãos antes das refeições, isto além da publicidade de duas de suas obras mais recentes: Diário da Mulher Vitoriosa (uma agenda com páginas em branco para serem anotadas) e Devocional da Mulher Vitoriosa , contendo textos bíblicos para meditação no dia a dia. O programa completou 25 anos no ar! Isto significa que o povo assiste e aprova!

Tomei algum tempo também assistindo R. R . Soares, que pelo menos não me afrontava com aquela gritaria no microfone dos outros interlocutores. Embora eu faça sérios questionamentos ao formato da teologia do missionário, principalmente o foco na questão da prosperidade, tenho que admitir que seu programa, dentre os evangélicos, foi o único que me proporcionou algum alívio com o quadro: Novela da vida real na qual alguém se apresenta dando testemunho de seu encontro transformador com Jesus Cristo. Ufa! Finalmente o Senhor Jesus conseguiu assumir “o púlpito”.

Lembrei-me de um professor de Sociologia, quando iniciei minha graduação em administração, que, numa ocasião, levou para a sala de aula uma gravação do programa de rádio do Haroldo de Andrade, no qual as pessoas narravam seus dramas pessoais em busca de conselho e orientação. Alguns alunos caíram na gargalhada, dizendo que era ridículo um professor universitário ouvir aquele tipo de coisa. Me lembro como se fosse hoje das palavras que ele dirigiu a nós, administradores em formação, mais de 20 anos atrás: “Vocês querem vender seus produtos às massas, mas como conseguirão fazer isso sem ouvir estas massas? Vocês têm que ouvir os problemas dessas pessoas se querem alcançá-las”. Que conselho tão verdadeiro e tão pastoral, vindo de alguém que nem cristão era. Lembrando das palavras deste professor, esgotei minha cota de paciência com os programas evangélicos e fui ao encontro dos programas que as massas estão assistindo nos fins-de-tarde brasileiros, e para minha surpresa, encontrei mais coerência num programa “belicoso” como o de Márcia Goldschmidt, cuja vinheta é: “mexeu contigo, mexeu comigo” do que no nosso festival evangélico de fartas promessas de prosperidade, vitórias e vida de sucesso.

Fiquei impressionada com a fartura de programas de auditório que lidam com sérias questões de gênero como: infidelidade conjugal, mentira entre amigas íntimas, mentiras entre cônjuges, desprezo de filhos de um segundo casamento, netos que se envergonham do comportamento de suas avós, valorização do ser humano, enfim, questões tratadas em talk-shows que expõem problemas de pessoas das camadas mais pobres, mas são pessoas que pedem para serem expostas, pois entendem que a sinceridade e o confronto público ainda é a melhor forma de solucionar as questões. Gente que busca solução e reconciliação, apesar da “ribalta”...

Apresentadoras como a jornalista Regina Volpato do programa Casos de Família tratando com tanto carinho e meiguice às pessoas sofridas que passam por seu programa tentando caminhos desesperados de reconciliação, carinho que no meu entender muitos pastores não dedicam à suas ovelhas em seus gabinetes, muitos líderes não exercem com seus liderados, muitos patrões crentes não exercem com seus empregados. Nossos púlpitos andam impregnados de promessas de vitórias e auto-ajuda, mas para aqueles que contribuem regularmente, as viúvas pobres que tem 2 moedas uma vez ou outra, se sentem fora da promessa de bênção.
Ouvi recentemente de uma delas o seguinte: “saio da igreja com um enorme peso, tenho a sensação que minhas finanças estão na mão do diabo depois da mensagem do pastor, me sinto tão culpada por não poder contribuir mais, fico triste, mas não tenho de onde tirar, irmã!”.
Para completar minha crise, o programa onde vi algumas questões tratadas mais seriamente com um viés um pouco mais espiritual, embora por caminhos teológicos que qualquer evangélico fará sérias recriminações, foi Luiz Gasparetto, com o Encontro Marcado nos fins de tarde.

Concluindo minha maratona, confesso que me sentí tão cansada quanto quem correu 50 km numa única manhã, talvez mais cansada pois também me sinto desanimada, um cansaço emocional que somatizou no corpo me deixou fragilizada por uns dois dias fazendo perguntas a mim mesma que não têm mais a ver com o tema que eu precisava desenvolver nesta comunicação, mas me perguntam pela espécie de cristianismo que estamos mostrando a este mundo. Que qualidade de vida transformada é a que temos, que nos expõe publicamente de forma tão desmoralizada? E pior, ainda fazemos questão de estar na ribalta, sob as luzes dos holofotes. Para quê? Para mostrar um corpo de Cristo rachado, sangrando no meio de tantas divisões e intrigas, amargura e acusação?

Na tentativa de ver como as questões de gênero eram tratadas na mídia pelos apresentadores evangélicos, acabei percebendo que nós, evangélicos, andamos negligenciando o ministério da reconciliação que nos foi conferido pelo Senhor. Não estamos trazendo pessoas para uma reconciliação com Deus nem para uma reconciliação umas com as outras. Estamos usando nossos dedos para condenar, atacar, falar de coisas que não conhecemos e o nome do Senhor Jesus que restaura a vida das pessoas está sendo esquecido quase todo o tempo.

Os seres humanos continuam com os mesmos problemas e a igreja tem desprezado sua missão de trazer alívio ao sofrimento humano através do testemunho de nosso encontro com o Senhor Jesus. A Igreja tem deixado que as pessoas que não têm dentro de si o Deus da Vida pastoreiem estas questões. A igreja se ressente das tendências das mulheres feministas em “assumir o poder” eclesiástico, esquecendo que a sensibilidade feminina, por uma questão de gênero, é a sensibilidade humana que mais promove reconciliações.

A ternura da apresentadora de Casos de Família me lembrou II Co 5,18-19: “Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação”. Nosso papel não é acusar, é reconciliar e isso Regina Volpato estava fazendo muito bem!

O Senhor Jesus falou disso no sermão do monte: “se ao deixares tua oferta no altar, lembrares que tens alguma coisa contra teu irmão, vai tu, reconcilia-te com ele primeiro, então vem e traz a tua oferta”. Do que adianta ofertar sem perdoar, sem reconciliar?

Me desaponta ter que admitir que pessoas que não são discípulas de Jesus estejam mais envolvidas com a reconciliação do ser humano do que nós estamos. Será que este evangelho que se encontra tão machucado na mídia ainda tem o poder de sobrepujar os corpos e vidas de seus pregadores e ainda falar mais alto? Temos a promessa bíblica que sim. Graças a Deus pelo Espírito Santo, que transforma esta bagunça que fazemos em verdadeiros milagres! Mas isto não nos isenta do dever de testificá-lo diariamente com nosso viver, com nossa ética, com nosso interesse pelo sofrimento humano e nossa dedicação em trazer a presença de Cristo para este mundo que agoniza, preenchendo os corações. Fiquemos com as palavras de Sérgio Pimenta, em sua poesia e música.

FONTE
Sérgio Paulo Muniz Pimenta

As palavras não dizem tudo, mesmo que o tudo seja fácil de dizer.
Com certeza, fala bem melhor o mudo, se sua atitude manifesta o que crê.
Compromisso, sumiço, omisso; ou faz o que fala ou se cala de uma vez,
Que não venha sobre si justo juízo, pois terrível coisa é cair nas mãos do Rei.

Mesma língua que abençoa – amaldiçoa!
Mesma língua canta um hino e traz divisão,
Não pode da mesma fonte o doce e o amargo, se Cristo habita de fato no coração.


[1] Comunicação apresentada em Painel no II Simpósio de Ciências da Religião promovido pelo programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião IBEC em 08 de Dezembro de 2007.
[2] http://www.youtube.com/watch?v=_Wud5vSIQ0I
[3] http://www.youtube.com/watch?v=KC0on_LpoMM
[4] http://www.youtube.com/watch?v=RVG6NeHoQBg&feature=related
[5] http://br.youtube.com/watch?v=cf1sr6ru7L4&feature=related
[6] http://epoca.globo.com/edic/210/especialgolpea.htm
[7] http://br.youtube.com/watch?v=ytJApy4p2V8 sobre o acúmulo de capital: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR76167-6009,00.html
[8] http://br.youtube.com/watch?v=INTssKOBJfQ
[9] http://br.youtube.com/watch?v=eLm-4fYYhWg
[10] http://www.youtube.com/watch?v=uhr_87LOtUk&feature=related

Comentários

Muito legal agora com o blog,pois tem a liberdade de postar vários temas.
Apenas não gostei do tamanho da letra e a cor de fundo que faz com que fique cansativo a leitura. Pense na possibilidade de alterar.
um grande abraço da Val
Lília Marianno disse…
Oi Val,
eu gosto do fundo preto... o que fazer? Aumentei o tamanho da letra pensando em vocês! Tudo bem? Beijos!

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