Subversão: o modo como entendo a submissão da mulher

Lília Dias Marianno[1] 

Esse texto foi preparado para um congresso de mulheres que participei em 2007 numa importante igreja batista no Rio de Janeiro. Foi um divisor de águas, muita gente não gostou, mas muitos passaram  a visualizar a questão com novas lentes. Vez ou outra volto a ele para atualizar as referências. Você pode voltar também para ver se acrescentei algo novo. Desfrute!

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Muito se fala, atualmente, sobre a revisão do papel da mulher cristã na sociedade no século XXI. Discute-se o patriarcado como se ele sempre estivesse presente na humanidade sem considerar o tempo no qual as mulheres se destacavam socialmente.

Os movimentos por equidade de direitos humanos ressaltam, cada vez mais, a necessidade de uma revisão das pautas que nos nortearam de maneira inquestionável até poucas décadas atrás. Desde a década de 70, com a força do movimento feminista, as mulheres tem voltado  a conquistar espaços primordiais na sociedade. Digo que estão voltando porque nem sempre foi assim. Houve maior proeminência das mulheres nas civilizações de 4.000 anos atrás. 

A antropóloga Carol Meyers salienta que, mesmo no Antigo Oriente, a mulher não era totalmente secundarizada (1).  O historiador Paul Johnson (2) ressalta resíduos desta proeminência de mulheres na história, pois afirma que as matriarcas bíblicas eram tratadas como figura de autoridade no clã. Mulheres da antiguidade, como na cultura egípcia, já tinham direito a voto muito tempo antes de Israel se constituir como nação (3).

Quanto mais antigo foi o período da história da humanidade, mais proeminente foi o papel da mulher. As civilizações mais antigas divinizavam o ventre materno, associavam a figura de maternidade à Terra, como o fazem ainda hoje as culturas ameríndias com o conceito de "pachamama"(4). 

Nos modelos mentais das primeiras civilizações, só os deuses podiam gerar vida, e se as mulheres carregavam a vida dentro do ventre é porque os deuses as colocaram como divindades na Terra.  Ainda no período do tribalismo israelita verificamos resquícios destes modelos culturais, como mostra um dos textos bíblicos mais antigos (em termos de idade textual): os capítulos 4 e 5 do livro de Juízes contando sobre Débora e Barak e o cântico de Débora (5).

Nas culturas primitivas do Antigo Oriente Próximo, não se considerava a participação do homem como igualitária nos processos de reprodução. Por isso as sacerdotisas eram, geralmente mulheres, pois serviam à Deusa, promotora da geração e da perpetuação da vida, portanto da reprodução e da posteridade humana (6). Divinizar as mulheres e sacralizá-las foi uma prática natural dos povos primitivos. 

Somente a partir dos 13 últimos séculos antes da Era Comum é que a presença masculina em lideranças foi ganhando mais força e por um motivo muito simples: as mulheres participavam das guerras em pé de igualdade com os homens, mas muitas vezes elas tombavam em batalhas e depois de mortas, descobria-se que estavam grávidas, isso fez a população da região sofrer grande queda. Segundo as pesquisas de Carol Meyers, neste período da história o decréscimo da população do Antigo Oriente Próximo foi tão intenso que parece que  os antigos pensaram que a espécie humana seria extinta se as mulheres continuassem morrendo daquela forma (7). Foi quando começou-se a prática de "deixar as mulheres em casa" enquanto os homens saíam para a guerra. O texto de Jz 4 e 5 parece ter nascido muito dentro deste contexto. Débora manda Barak à guerra e ele não quer ir, só se ela for junto... vejam como é claro de entender quando se conhece o contexto (8)!

Se a gente gostar de filmes e séries épicas como Vikings, Brumas de Avalon, Last Kingdom  (e até a divertidíssima série Norsemen) que refletem com significativa fidelidade histórica as culturas nórdicas e celtas (séculos VII a X EC), vamos perceber a presença de mulheres como guerreiras, amazonas, sacerdotisas e rainhas com muita profusão. Eram mulheres com muita força de comando, não havia esta figura de submissão feminina que subjugou as mulheres da civilização cristã nos últimos 2000 anos da história humana.

A partir daquele período da história (por volta do século XIII AEC no Antigo Oriente Próximo)  as mulheres deixaram de ir às guerras e passaram a ficar preservadas no ambiente da casa, donde vem a fama de que "a casa é o espaço da mulher" (a partir de onde também começam a surgir os desvios de compreensão que relegam todas as responsabilidades da casa à mulher) (9).

De toda forma, as mulheres  israelitas sempre tiveram uma proeminência política maior do que as mulheres dos povos vizinhos de Israel no mesmo período da História. Sara, Rebeca, Raquel, Lia, Tamar, Rute, as filhas de Zelofeade (no livro de Números) e depois Débora, Jael, Mical, Bate-Seba, Atalia, Jezabel, Hulda não são exatamente modelos de submissão feminina no contexto socio-histórico do Antigo Israel. Elas atuavam com voz de mando na vida do clã, entre as tribos e na nação como rainhas. Por isso  particularmente considero um anacronismo dizer que havia tanta subjugação da mulher no Primeiro Testamento quanto muitos querem afirmar, pois esta subjugação só acontece a partir da influência do helenismo na cultura judaica. Antes as mulheres  interferiam fortemente em muitas decisões políticas. Aliás, a genealogia de Jesus é pontilhada de várias destas mulheres nada-submissas.

Depois desde momento em que as mulheres começaram a ser protegidas pelo ambiente da casa, houve muitas mudanças na religião do Antigo Israel e por volta do século VII AEC, durante o reinado do rei Josias, houve centralização do javismo e  tornou-se proibido adorar ao Deus de Israel fora do templo de Jerusalém. As mulheres começaram a participar menos da vida pública, mesmo assim muitas delas atuaram nos processos redacionais dos livros chamados de Megguilot (5 rolos) lidos nas festas judaicas até hoje (Rute, Ester, Lamentações, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes) e considerado por muitos exegetas como o "Pentateuco das Mulheres" (10).

Este processo de exclusão começou pelo institucionalismo religioso oficial do monoteísmo israelita. Mas nas aldeias e nas casas as mulheres continuavam sendo consultadas e respeitadas como líderes religiosas. Tanto que os ajudantes do próprio rei Josias, ao receberem os rolos que estavam guardados no templo, foram consultar a profetisa Hulda, e não Jeremias, que já atuava na época como profeta (11).

Depois do exílio (a partir de 455 AEC, mas principalmente no período grego entre os anos 333 até 163 AEC) o silenciamento da mulher cresceu em progressões geométricas. A filosofia grega possuía um teor androcêntrico evidente (12) e ela adentrou o movimento literário judaico, responsável pelas últimas revisões editoriais na formação do cânon do Primeiro Testamento. Tanto que nos dias de Jesus a mulher já tinha se tornado um "outro ser humano", muito diferente daquela mulher dos tempos primordiais.

Para diferenciar-se dos cultos politeístas e de adoração às deusas de Canaã e da Babilônia, o sacerdócio do monoteísmo israelita  tornou-se exclusivamente masculino e as mulheres foram interditadas de participar de ofícios cúlticos. Não podemos esquecer que o monoteísmo só se tornou religião estatal em Israel no período pós-exílico. Antes disso a  nação era significativamente sincretista (13).

O culto oficiado pela mulher era totalmente impróprio neste novo contexto, principalmente porque mulheres menstruavam (daí tantas leis sobre menstruação no livro do Levítico) e por isso sangravam as vestes levíticas. 

O androcentrismo cultuado pelos gregos foi consolidado com o imperialismo romano e tornou-se padrão nas sociedades ocidentais. E é deste androcentrismo que ainda estamos reféns e tentamos nos libertar em pleno século XXI. Infelizmente o cristianismo assimilou o modelo androcêntrico como o “modelo correto” de ser cristão. Até porque o apóstolo Paulo estava profundamente imerso neste sistema cultural quando escreveu suas cartas.  Neste modelo, o homem é o cabeça da família, a mulher tem que ser submissa a ele, assim como os filhos. Neste modelo tudo depende do homem e os que estão abaixo lhe obedecem. Esta transição não foi fácil (14)

Na antiguidade o homem não era reconhecido como "cabeça da casa". Desde sempre era a mulher quem mandava na casa. Veja que o sistema cristão, influenciado por gregos e por romanos, não apenas retirou  a mulher do cenário sócio-político e religioso, mas incentivava a dominação masculina a ocupar um espaço que sempre fora "domínio" feminino: a casa. A sociedade israelita mal tinha começado a se acostumar com os homens controlando a religião e agora os judeus-cristãos tinham que se acostumar com o homem interferindo também na casa. Mas isto se deu por alguns fatores.

Primeiramente os gregos não tratavam as mulheres de modo igualitário. Embora haja muitos estudos mostrando que as mulheres gregas construíam suas carreiras de modo autônomo sem se importar com esta ode à masculinidade feita nas escolas de filosofia da Grécia, o modelo perfeito de amor para os gregos era aquele  demarcado por uma relação de erudição intelectual e sempre entre dois homens. O tal "amor ágape" era amor nutrido entre dois homens porque não havia relação de troca entre eles, apenas de doação de afeto e admiração intelectual. E aqui entende-se como relação de troca o "contrato-social" de reprodução inerente às relações de casamento e geração de descendentes-herdeiros.

Em segundo lugar, os romanos não mudaram o sistema cultural. Quando a cristianização progressiva do Império Romano foi acontecendo, tornou-se socialmente "desmoralizante" para as  igrejas reunidas nas casas serem lideradas por mulheres, embora muitas vezes isso não conseguiu ser evitado, como se verifica na citação às mulheres liderando nas casas em várias epístolas paulinas. Por tal motivo as epístolas pastorais (consideradas escritos deuteropaulinos pela exegese histórico-social) recomendam tanto que os pastores sejam respeitados nas suas próprias casas (Tm 3). Antes disso, a atividade dos homens era focada no ambiente externo e as casas continuavam sendo espaços das mulheres (15).

Por mais de 2000 anos a cristandade ignorou, grande parte das vezes de forma inconsciente, mas grande parte das vezes de maneira proposital e com finalidade política, a relevância das mulheres em lideranças religiosas e na  espiritualidade da família. Sempre se esperou que os homens fossem sacerdotes do lar. Como mulher cristã divorciada eu verifico que esta foi uma educação muito errada que nos foi ensinada. Por anos esperei de meu marido que ele tomasse a liderança das iniciativas de espiritualidade da família e isso nunca aconteceu.

Estamos no século XXI, e qual o quadro que temos diante de nós? Uma sociedade na qual a mulher recupera os espaços que antes exercia, na qual a mulher, pela sua natural versatilidade e habilidade de dominar simultaneamente muitas atividades, tem ocupado espaços no mercado de trabalho que antes eram apenas masculinos. Muitos homens têm perdido empregos e suas posições de destaque em seus ambientes profissionais porque uma mulher considerada mais competente que ele (ou mais barata) assumiu seu cargo. Vários destes homens têm passado anos no desemprego, sem conseguir recolocação profissional e isso tem abalado a identidade masculina (especialmente a latino-americana), porque a sociedade continua esperando que este homem seja o  provedor da família. 

A mulher contemporânea precisar ir à luta para a “casa não cair” (ou por uma monoparentalidade forçada pelo abandono do marido, ou para ajudar nas despesas de casa, ou ainda para suprir o papel provedor, muitas vezes não exercido por homens que estão em processo delongado de desemprego e consequentemente de depressão) (16). E devemos ser realistas, tenho ouvido de meus alunos que "é muito difícil ser homem hoje em dia". Por mais que as conquistas femininas ainda sejam poucas perto da necessidade mais ampla, não é fácil ver sua posição de poder na sociedade ser perdida dia após dia  por causa da força da mulher. Mas a igreja continua cobrando delas uma submissão que por mais de dois milênios tem sido confundida com subserviência.

Quando fazemos uma cuidadosa investigação sobre diversidade de gênero e as diferenças entre o funcionamento dos cérebros masculino e feminino conseguimos constatar que a mulher não foi criada por Deus para ser ser subserviente pois  as mulheres (até as mais recatadas) ao longo da história, são conhecidas como as que reclamam, protestam tomam inciativa contra as injustiças, são as que abrem a boca para denunciar o erro e não ficam conformadas quando as coisas andam erradas. Deus deu à mulher um espírito irrequieto e nada submisso.  As mulheres mais recatadas tem somatizado muitas doenças  por serem forçadas a calar diante do erro e da opressão.

Mulheres têm na identidade de gênero, uma natureza subversiva e conspiradora e ai do mundo se não fossem as conspirações das mulheres. Diante desta natureza irrequieta que nos foi dada por Deus, e da confusão terminológica causada pela igreja com a expressão submissão, a pergunta que fazemos é: o que é ser uma mulher submissa numa contemporaneidade, na qual o homem tem perdido “poder” e “autoridade” e quando tantas vezes o próprio homem cristão não está  interessado em cumprir o papel que a sociedade espera que ele cumpra (por exemplo assumir a paternidade de filhos gerados fora do casamento)? 

Talvez uma resposta provocativa esteja na própria etimologia e precisemos voltar à origem das palavras para tentar entender o que realmente se espera de nós através do texto bíblico: 

vós mulheres, sede submissas a vossos próprios maridos, para que também se alguns deles não obedecem apalavra, pelo procedimento de suas mulheres sejam ganhos sem palavra [...] vós maridos, vivei com elas com entendimento, dando honra à mulher como vaso mais frágil, e como sendo elas herdeiras convosco da graça da vida, para que não sejam impedidas as vossas orações” (I Pe 3,1.7). 

A palavra submissão neste texto vem do grego upotassomenai que quer dizer estar em sujeição. Você consegue perceber  que o problema está na influência grega sobre o cristianismo?  No português, uma das línguas neo-latinas e herdeira de muitas raízes gregas na construção gramatical, a submissão significa:
 
1. submeter-se a uma autoridade, lei ou força, obediência, subordinação. 
2. disposição para aceitar um estado de dependência, docilidade. 
3. estado de rebaixamento servil, subserviência.

No primeiro sentido, verificamos que, submeter-se à uma autoridade é algo necessário à qualquer ser humano para que a anarquia não seja instalada, à lei por causa do exercício coletivo da cidadania e civilidade, e à força por causa da violência física da qual desejamos ser poupadas. É inteligente ser submissa, nestes casos. 

No sentido 2 fica mais interessante pois aqui é que se requer da nossa natureza irrequieta e subversiva o jeito, como dizem por aí:  "todo feminino" de convencer, de persuadir de conduzir um grupo na direção da razão sem perder a compostura: a docilidade. E sabemos que, quando nós mulheres mostramos docilidade nós cooperamos para a preservação do valor daquele que procura nos proteger. 

Isto requer de nós também maior maturidade emocional com capacidade de entender o modo como o cérebro masculino funciona aprendendo a não gerar expectativas acima das habilidades naturais da identidade de gênero dos homens (17).

Aqui não estou entrando, e de maneira proposital, na questão do feminicídio e da violência contra a mulher que aumentou drasticamente nos últimos anos porque este texto foi, originalmente escrito, em 2007. A realidade não era tão visível como na atualidade, e isso vai demandar outro artigo,  com base em conferências  que realizei sobre o tema do feminicídio nos últimos meses.

Por fim, o sentido 3 é o grande causador desta confusão que vemos hoje instalada na tradição cristã: a ideia de que submissão é subserviência, da redução da mulher a um patamar servil. Aqui até as mais submissas tem muita dificuldade de processar. Mas note... o padrão de dominação é grego! É assim que funciona na nossa língua.

Minha proposta a partir deste ponto é provocar uma  subversão da submissão e celebrar esta subversão irrequieta como um bem necessário no mundo. Não de um modo que mine a nossa auto-estima gerando culpa por sermos subversivas ou por sempre estarmos envolvidas em conspirações. Mas entendo que a conspiração feminina deve ser feita de modo sutil, cobrando, denunciando, indo à luta, fazendo justiça, mas sem incendiar o país, sem destruir a vida que há na terra, sem destruir relacionamentos. Afinal, nós mulheres, somos geradoras de vida.

Ouvi de um ancião uma definição que me parece muito apropriada neste momento. Ele disse "sub-missão é missão de baixo, de base, do subsolo, do alicerce sobre o qual se apoia toda uma estrutura". Embora escondida, esta missão de subterrâneo é imprescindível para sustentação de qualquer prédio. O que está no interior (no subsolo) é o fundamento das coisas. 

Às mulheres foi dado o dom de penetrar e modificar  a base, a missão de prover estrutura sólida para a casa, a  estrutura emocional, espiritual, logística, administrativa, muitas vezes também a missão de autoridade e financeira quando nos falta o provedor. Isto é um baita poder. Eu usei este poder durante toda a educação dos meus filhos que eram pré-adolescentes quando me divorciei e hoje são adultos que respeitam suas companheiras. Só que fomos ensinadas a não perceber o potencial desta força. 

Não podemos exigir dos homens uma natureza que foi instituída em nós pelo próprio Deus e nem nos apropriarmos de maneira passiva da confusão etimológica assumida pela Igreja quando adotou o modelo greco-romano como referência para a vida das comunidades cristãs. 

Não dá para transferir para os homens responsabilidades que sempre foram nossas: subverter a ordem, mudar as bases da sociedade. Com a força do cupim (silencioso e perseverante, lá no subsolo) a gente consegue fazer uso desta noção de "submissão" para detonar com toda ordem machista instituída pelo patriarcado, mas precisamos acreditar nesta força. Já estamos fazendo isso de muitas formas diferentes. Mas entendo que bater sempre de frente nem sempre é a estratégia mais inteligente.

 A crise de masculinidade faz aos homens a seguinte pergunta (de modo impronunciável): até que ponto sou necessário nesta sociedade?

Os homens são muito necessários nesta sociedade, principalmente participando da vida de seus filhos e filhas com amor presente e educador, que desenvolve seres humanos melhores, mais sensíveis, conscientes e justos. Nenhuma mulher consegue substituir a presença paterna na vida dos filhos, por mais eficiente que ela tenha sido na sua monoparentalidade. Esta carência de pai ficará ali quando o pai é ausente ou quando a paternidade é disfuncional abrindo buracos enormes na afetividade das crianças.

Não há como discutir o papel da mulher na sociedade sem discutir o papel dos homens na construção de novos modelos de masculinidade. Isso tem que ser feito conjuntamente, em grupos de homens que não tenham medo de incluir as mulheres nesta discussão. As iniciativas na formação de grupos de reflexão sobre masculinidade são  profundamente louváveis e precisam ser multiplicadas. Todavia os homens só começaram a sentir necessidade de refletir sobre o papel masculino na atualidade quando as mulheres se recusaram a aceitar a subserviência que lhes foi imposta. Percebem como o poder da subversão é concreto?

Subverter a ordem, destruir uma estrutura arcaica que não atende mais às necessidades da sociedade com a força do cupim, minando, infestando a base até desmoronar, esse é um tremendo poder. Eu sempre usei este poder também enquanto educadora, como professora de teologia para classes de futuros líderes religiosos, turmas com 90% dos alunos homens. Nunca precisei impor um discurso feminista militante. Apenas mostrava, por todos os meios científicos, exegéticos, filosóficos e antropológicos (numa disciplina que apliquei chamada Teologia e Gênero) que o modelo androcêntrico é prejudicial à sociedade e mais prejudicial ainda aos próprios homens. Muitos ex-alunos que se tornaram pastores pelo Brasil a fora, vez ou outra me escrevem dizendo que tem aplicado o que aprenderam em classe na conscientização de suas comunidades de fé (18). 

Gosto da frase de Guevara que diz:
há que endurecer sim, sem perder a ternura, jamais!

Mas isso é coisa que somente as mulheres conseguem fazer e desse modo, muito mais interessante.

É assim que eu sou "submissa"... com a força do cupim! (19)

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REFERÊNCIAS

(1) MEYERS, Carol. As raízes da restrição. As mulheres no Antigo Israel. In: Estudos Bíblicos. n. 20 (A mulher na Bíblia) , Petrópolis: Vozes, 1990, p. 9-26.

(2) JOHNSON, Paul. História dos Judeus. Rio de Janeiro: Imago, 1987. Também: MARIANNO, Lília Dias. "Manda quem pode; obedece quem tem juízo". Apontamentos sobre as relações de poder nas famílias dos patriarcas. In: Estudos Bíblicos, n. 85. (A família na Bíblia) Petrópolis, Vozes, 2005/1, p. 11-22.

(3) MEYERS, Carol.  papeis de gênero e Gn 3,16 revisitado. In: BRENNER, Athalya (organizadora). Gênesis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo Paulinas, 2000, p. 131-157.

(4) MEYERS (1990).

(5) MARIANNO, Lília Dias. Débora e Barac: entre prepotência e dependência e Jael e Sísera: sobre pactos, lealdades e violações. In: Relacionamentos complicados da Bíblia. Rio de Janeiro: Eagle Books, 2015.

(6) TEUBAL, Savina. Sara e Agar: matriarcas e visionárias. In: BRENNER, Athalya (organizadora). Gênesis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo Paulinas, 2000, p. 259-275. e MARIANNO, Lília Dias. Bebês esmagados contra as pedras: santidade intolerante no imaginário do expatriado (Sl. 137). In: Estudos Bíblicos.  Petrópolis: Vozes, 2010, p. 43-52.

(7) MEYERS (2000)

(8) MARIANNO, Lília Dias. Profetisas no Antigo Israel. Entre um conselho e outro, interferindo no curso da história. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis: Vozes, n. 60 (Profetas Anteriores), 2008/2, p. 158 - 166.

(9) MEYERS (1990).

(10) MARIANNO, Lília Dias. Rindo para não chorar no balcão dos "mal-amados". Uma visão panorâmica do livro de Cântico dos Cânticos. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. São Paulo: Nhanduti, n. 67 (Meguilot enfoque feminista), 2010/3, p. 69-80.

(11) MARIANNO (2008).

(12) ROSA Luiz Pinguelli.  Tecnociências e humanidades: novos paradigmas, velhas questões. O determinismo newtoniano na visão de mundo moderna. São Paulo: Paz e Terra, 2005. Aqui o prof. Luiz Pinguelli salienta que a filosofia grega só era acessível aos homens, era proibido às mulheres participarem de discussões filosóficas.  Exemplifica mostrando a maiêutica socrática em Teeteto e o teor de supremacia masculina presente em todo o diálogo criado por Platão.

(13) MARIANNO, Lília Dias. Os/as estrangeiro/as dizem: "Yahweh não nos excluirá de seu povo!" Manifestos contra o imperialismo na teologia da reconstrução. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. n. 48 (os povos enfrentam o império) 2004/2, p. 44 -55.

(14) STROHER, Marga. Eclesiologias em conflito nas deuteropaulinas: o caso das cartas pastorais. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. n. 55 (Deuteropaulinas: um corpo estranho no corpo paulino?). Petrópolis: Vozes, 2006/2, p. 81-97.

(15) STROHER (2006)

(16) MARIANNO, Lília Dias. Masculinidade: queremos conversar sobre isso! Uma proposta curricular para graduações de teologia. In: Mandrágora n. 12 (Gênero, religião, masculinidades). São Bernardo do Campo: UMESP, 2006, p. 128-140.

(17) MARIANNO, Lília Dias. "Tudo posso!" ... será? Masculinidade, (im)potência e dependência em Filipenses. In: Estudos Bíblicos n. 102 (Carta aos Filipenses). Petrópolis: Vozes, 2009/2, p. 77-84.

(18) MARIANNO, (2006)

(19) Todos os artigos de minha autoria estão disponíveis para download no meu portal do Academia.edu, exceto os capítulos em livros ou livros completos. Apesar de não ter citado diretamente, sou devedora também às leituras feitas nas obras abaixo referenciadas e para a produção do meu texto:

MARIANNO,  Lília Dias. Feminismo Protestante. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque. Explosão Feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Cia das Letras, 2018,p. 414-444.

BRENNER, Athalya. A mulher israelita. Papel social e modelo literário na narrativa bíblicaSão Paulo: Paulinas. 2001.

BROLEZZI, Antonio Carlos. Memórias sexuais do Opus Dei. São Paulo: Panda Books, 2006.

REIMER, Ivoni Richter. Vida de mulheres na sociedade e na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1995.

SCHOTTROFF, Luise. Mulheres no Novo Testamento. Exegese numa perspectiva feminista. São Paulo: Paulinas, 1995.

Comentários

Anônimo disse…
UAU!Obrigado e Amém.
Ruben Marcelino disse…
Lília,

Gostei muito do seu texto, principalmente do esclarecimento histórico que você expõe ao longo dele. Entretanto, uma coisa me incomoda, não em suas idéias, porém em algo que menciona. Você citou a definição de um ancião que conhece, segundo a qual submissão é missão de base. Com todo respeito, será que definições como essa não podem ser consideradas uma suavização para insistir na manutenção do conceito de submissão feminina na igreja por puro concordismo bíblico e asseguramento do destaque da posição masculina? Penso na existência de um pensamento do tipo: "Tudo bem, as mulheres estão exigindo maiores espaços também na igreja. Mas 'a Bíblia diz' que as mulheres devem ser submissas a nós, homens, ficar caladas na igrejas e ser impedidas de ensinar. Afinal de contas, 'segundo a Bíblia', a mulher é quem foi enganada e caiu em transgressão. Não podemos, portanto, 'ir contra a Bíblia' e, ao mesmo tempo, temos de dar um jeito nelas. Façamos o seguinte: concedamos a elas alguns ministérios (supervisionados pelos nossos, claro), promovendo as suas funções com um discurso, segundo o qual a sua submissão, além de ordenada divinamente, é importante porque é uma 'ajuda' fundamental quando concretizada por meio de apoio ministerial ao trabalho dos obreiros. Assim, elas ficam satisfeitas por estarem atuando na igreja e nós asseguramos a nossa autoridade sem problemas." Será que a situação não é muito mais perversa do que apenas uma questão de auto-estima masculina?

O que você acha?

Beijos!!!
Unknown disse…
Me arrepiou.Sou acadêmica do curso de Letras da UPF e participo de um projeto de iniciação científica. Fui desafiada a escrever um artigo para o concurso do CNPQ cujo tema é as desigualdades de genero.Minha linha de pesquisa e raciocínio foi estabelecer uma reflexão exatamente a respeito do propósito de Deus ao criar a mulher e buscar a origem do discurso que nos segregou por centenas de anos da vida social.Apoiei-me em textos bíblicos, pois sou cristã neopentecostal e não aceito a idéia de submussão ser sinonimo de escravidão.Ler o teu texto foi algo que me emocionou, não apenas por termos a mesma visão a respeito do papel da mulher, mas , também, porque creio que Deus tem guiado-me para escrever esse artigo.Vou citá-la no meu corpus com honra.É um desejo meu, o qual tenho certeza que vou realizá-lo, após concluir a graduação de Letras estudar Teologia, Que o Senhor permita-me ser tua aluna.
Receba o meu abraço com carinho.
Lisiane De Cesaro
Renata disse…
Olá, gostei demais do seu texto! Trouxe esclarecimento pra mim, pois concordo que a submissão vem sendo apresentada por muitos pastores de maneira equivocada, sendo que este conceito impede muitas mulheres de aceitarem a Jesus ou seguir por não estarem dispostas a praticar "essa submissão pregada" .
Que Deus te abençoe e continue postando mais assuntos como este.
Abraço =)
Westh Ney disse…
Querida Lília

gostei muito do texto. Parabéns.
Linda a sua trajetória e trabalho. bjs
westh
Lucimeire Peres disse…
Gostei dos esclarecimentos, mas eu acredito que a maioria dos homens que exige a submissão das mulheres em forma de subserviência dificilmente muda ao longo de toda a sua vida, e quantas vezes o relacionamento familiar não vira um ciclo vicioso de dependência-codependência, com presença de abuso moral e às vezes físico, sem nenhuma luz no fim do túnel... em alguns casos bem se aplicaria o divórcio, mas ele é descartado porque entra na mesma categoria de questões bíblicas interpretadas de forma equivocada. E assim vai o povo levando miseravelmente sua vida, juntos, angustiantemente infelizes mas obedientes. Alguns crêem na submissão subserviente da mulher como uma questão da natureza, que a mulher nasceu pra isso, tipo selo de autenticidade da mulher de verdade, a mãe deles também era assim, a tia, a vó... Esta exigência pode também estar apenas disfarçada de crença na Bíblia, e ser na verdade puro machismo, misoginia, manipulação característica de dependentes químicos, uma face masoquista ou psicopata, enfim...
Lília Marianno disse…
Enfim... o assunto é amplo demais para ser analisado numa visão reducionista. Tenha apenas certeza que uma mulher divorciada que cria dois filhos homens sozinha, quando escreve um texto destes, tem um lastro de "outro nível" para compartilhar. Grande abraço.

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